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domingo, 6 de março de 2011

Bar Ruim é lindo - Vale a pena ler, se você for meio intelectual e meio de esquerda

Bar ruim é lindo
Antonio Prata.

Eu sou meio intelectual, meio de esquerda, por isso frequento bares meio
ruins.
Não sei se você sabe, mas nós, meio intelectuais, meio de esquerda, nos
julgamos a vanguarda do proletariado, há mais de cento e cinquenta anos.
(Deve ter alguma coisa de errado com uma vanguarda de mais de cento e
cinquenta anos, mas tudo bem).

No bar ruim que ando frequentando ultimamente o proletariado atende por
Betão - é o garçom, que cumprimento com um tapinha nas costas, acreditando
resolver aí quinhentos anos de história.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos ficar "amigos" do garçom,
com quem falamos sobre futebol enquanto nossos amigos não chegam para
falarmos de literatura.

- Ô Betão, traz mais uma pra gente - eu digo, com os cotovelos apoiados na
mesa bamba de lata, e me sinto parte dessa coisa linda que é o Brasil.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, adoramos fazer parte dessa coisa
linda que é o Brasil, por isso vamos a bares ruins, que têm mais a cara do
Brasil que os bares bons, onde se serve petit gâteau e não tem frango à
passarinho ou carne-de-sol com macaxeira, que são os pratos tradicionais da
nossa cozinha. Se bem que nós, meio intelectuais, meio de esquerda, quando
convidamos uma moça para sair pela primeira vez, atacamos mais de petit
gâteau do que de frango à passarinho, porque a gente gosta do Brasil e tal,
mas na hora do vamos ver uma europazinha bem que ajuda.

Nós, meio intelectuais, meio de esquerda, gostamos do Brasil, mas muito bem
diagramado. Não é qualquer Brasil. Assim como não é qualquer bar ruim. Tem
que ser um bar ruim autêntico, um boteco, com mesa de lata, copo americano
e, se tiver porção de carne-de-sol, uma lágrima imediatamente desponta em
nossos olhos, meio de canto, meio escondida. Quando um de nós, meio
intelectual, meio de esquerda, descobre um novo bar ruim que nenhum outro
meio intelectual, meio de esquerda, frequenta, não nos contemos: ligamos pra
turma inteira de meio intelectuais, meio de esquerda e decretamos que aquele
lá é o nosso novo bar ruim.

O problema é que aos poucos o bar ruim vai se tornando cult, vai sendo
frequentado por vários meio intelectuais, meio de esquerda e universitárias
mais ou menos gostosas. Até que uma hora sai na Vejinha como ponto
frequentado por artistas, cineastas e universitários e, um belo dia, a gente
chega no bar ruim e tá cheio de gente que não é nem meio intelectual nem
meio de esquerda e foi lá para ver se tem mesmo artistas, cineastas e,
principalmente, universitárias mais ou menos gostosas. Aí a gente diz: eu
gostava disso aqui antes, quando só vinha a minha turma de meio
intelectuais, meio de esquerda, as universitárias mais ou menos gostosas e
uns velhos bêbados que jogavam dominó. Porque nós, meio intelectuais, meio
de esquerda, adoramos dizer que frequentávamos o bar antes de ele ficar
famoso, íamos a tal praia antes de ela encher de gente, ouvíamos a banda
antes de tocar na MTV. Nós gostamos dos pobres que estavam na praia antes,
uns pobres que sabem subir em coqueiro e usam sandália de couro, isso a
gente acha lindo, mas a gente detesta os pobres que chegam depois, de
Chevette e chinelo Rider. Esse pobre não, a gente gosta do pobre autêntico,
do Brasil autêntico. E a gente abomina a Vejinha, abomina mesmo, acima de
tudo.

Os donos dos bares ruins que a gente frequenta se dividem em dois tipos: os
que entendem a gente e os que não entendem. Os que entendem percebem qual é
a nossa, mantêm o bar autenticamente ruim, chamam uns primos do cunhado para
tocar samba de roda toda sexta-feira, introduzem bolinho de bacalhau no
cardápio e aumentam cinquenta por cento o preço de tudo. (Eles sacam que
nós, meio intelectuais, meio de esquerda, somos meio bem de vida e nos
dispomos a pagar caro por aquilo que tem cara de barato). Os donos que não
entendem qual é a nossa, diante da invasão, trocam as mesas de lata por umas
de fórmica imitando mármore, azulejam a parede e põem um som estéreo tocando
reggae. Aí eles se dão mal, porque a gente odeia isso, a gente gosta, como
já disse algumas vezes, é daquela coisa autêntica, tão Brasil, tão raiz.

Não pense que é fácil ser meio intelectual, meio de esquerda em nosso país.
A cada dia está mais difícil encontrar bares ruins do jeito que a gente
gosta, os pobres estão todos de chinelos Rider e a Vejinha sempre alerta,
pronta para encher nossos bares ruins de gente jovem e bonita e a difundir o
petit gâteau pelos quatro cantos do globo. Para desespero dos meio
intelectuais, meio de esquerda que, como eu, por questões ideológicas,
preferem frango à passarinho e carne-de-sol com macaxeira (que é a mesma
coisa que mandioca, mas é como se diz lá no Nordeste, e nós, meio
intelectuais, meio de esquerda, achamos que o Nordeste é muito mais
autêntico que o Sudeste e preferimos esse termo, macaxeira, que é bem mais
assim Câmara Cascudo, saca?.

- Ô Betão, vê uma cachaça aqui pra mim. De Salinas quais que tem?

(Texto integrante do volume As Cem Melhores Crônicas Brasileiras,organizado
por Joaquim Ferreira dos Santos.)

Um comentário:

Carla disse...

Adorei a crônica!!!! O pior é saber que faço parte da massa "meio intelectual, meio de esquerda"!!!!! huauhahuauhauhahuahuahu!!!!!